domingo, 16 de outubro de 2011

Retrospectiva: O Cinema Americano Depois dos Anos 00



por Léo Tavares

Encerrada a mostra O Cinema Americano Depois dos Anos 00, nos debruçamos sobre algumas questões cruciais para que a proposta deste pequeno ciclo de filmes seja percebida como uma tentativa de expor, através de quatro obras da recente cinematografia norte-americana, vislumbres do que seria a visão contemporânea do mundo pelo olho sempre mutável do cinema.
A linguagem cinematográfica, espaço sintético de exploração artística, tão ampla em suas possibilidades de investigação de olhares, comprovou, logo nas primeiras décadas de sua existência, esta característica de pluralidade discursiva. Tal pluralidade, de certo modo refreada pela consolidação de uma narrativa clássica preconizada por D. W. Griffith na primeira metade do século XX, permaneceu sendo a força-motriz para as criações de inúmeros autores cujas propostas audiovisuais não se enquadravam nos parâmetros vigentes de produção.
A experimentação de linguagem, que até meados da década de 60 se dava com maior liberdade fora dos Estados Unidos, com as vanguardas europeias e toda uma tradição de cinema autoral, conheceu, a partir de Cassavetes, um novo horizonte para o cinema norte-americano. Pode-se dizer que o diretor de Shadows (1959) abriu o caminho para todos os cineastas independentes que surgiram nas décadas de 60 e 70. Em face da decadência do studio-system, com a criação do Festival de Sundance (1978) e a profusão de diretores produzindo filmes de baixo orçamento, as obras cinematográficas que não correspondiam aos padrões hollywoodianos encontraram validação e incentivo. Diretores como Stanley Kubrick, Martin Scorsese, Brian de Palma, Robert Altman, entre outros, despertaram a atenção do público e da crítica, consolidando o chamado cinema independente.
De lá para cá, Hollywood se fortaleceu mais e mais no topo da indústria cinematográfica, mas o espaço para as produções que se inserem fora do circuito mainstream permanece garantido, e recebe fôlego a cada vez que um novo realizador apresenta um olhar singular sobre o mundo. As inovações tecnológicas não soterraram a linguagem, configurando-se como ferramentas que proporcionam um leque maior de possibilidades de criação, e as temáticas surgem notadamente como um olhar sobre o próprio tempo: este transcorrer dos fatos enquanto acontecem - ou contemplação sobre fatos recentes - está repleto de reflexão e crítica a respeito da condição humana no século XXI. A tecnologia, a massificação cultural, as conjunturas econômicas e políticas, engendraram no cerne da sociedade contemporânea uma espécie de apologia ao individualismo exacerbado. As relações humanas não são as mesmas de trinta anos atrás e as consequências da dita pós-modernidade se instauram no cotidiano do cidadão comum, este grande personagem das narrativas atuais.
É nessa perspectiva que surgem histórias como as narradas nestas quatro exibições da mostra O Cinema Americano Depois dos Anos 00. Sentimentos latentes de deslocamento, vazio e solidão se manifestam nas rotinas de vidas imersas num universo onde as grandes ideologias e as subjetividades humanas deram lugar à hegemonia do consumo e à transitoriedade das relações. Se a perda da identidade se circunscreve como característica vital para a manutenção do status quo, a arte se encarrega de lançar foco sobre esses sujeitos e lhes dar um nome. É o que Miranda July busca com Eu, Você e Todos Nós (Me and You and Everyone We Know, 2005), ao revelar os fios invisíveis que conectam pessoas anônimas de algum lugar do mundo, e como essas conexões, frágeis sob a ótica da massificação em prol da identidade, se manifestam fortes se percebidas por um viés subjetivo e, portanto, humano. A dificuldade de comunicação, a improbabilidade das relações e o desconforto do sujeito vivendo as complicações racionais do mundo são vistos por Miranda July como problemas senão a serem enfrentados, a serem ao menos abordados e investigados. Sua Christine Jesperson é constructo dessas angústias contemporâneas e sendo fruto de uma temporalidade que está a transcorrer, suas buscas e inquietações não se concluem ou são sanadas, ainda que o desfecho do filme nos revele um algo de realização e transcendência, num nível muito íntimo, mais sugestivo do que determinante.
Essa inquietação, mais aguda e melancólica no Vincent Gallo de Brown Bunny (The Brown Bunny, 2003) mesmo que agravada por fatores específicos como a perda e a desconformidade, parece ser parte essencial da identidade pós-moderna. O personagem marginal de Brown Bunny, movido apenas pela dor e alienado do resto do mundo, constrói para si uma espécie de bolha onde apenas com a negação da verdade o mundo pode ser palatável, e assim, ao afastar-se dos outros seres humanos em sua trajetória, os rastros de civilização surgem como elementos invasivos. A paisagem, em Gallo, desoladora e silenciosa, e a própria estrutura narrativa de road movie, refletem o estado de espírito de um indivíduo que simplesmente vaga, no mundo, sem paragem e sem perspectivas.
Em Viagem a Darjeeling (The Darjeeling Limited, 2007), outra viagem sustenta o fio condutor da trama, mas aqui a premissa é muito mais metafórica: três irmãos embarcam em um trem na Índia, com a finalidade de estreitarem seus laços familiares. Em busca de uma renovação espiritual propiciada pelo simples fato de estarem na Índia, os três irmãos se deparam com a impossibilidade de se forçar transformações internas naturais, e por consequência, com a exposição de suas fraquezas e com o desmantelamento de suas verdades. A artificialidade de um pensamento estereotipado como o típico americano –ou ocidental, aos poucos dá lugar a uma delicadeza que revela como o diretor Wes Anderson trabalha a construção de seus personagens: existe um aprofundamento gradativo que nos revela suas particularidades, sensibilidades quase que soterradas em camadas de uma plasticidade rígida vão se deixando entrever e, ao fim do filme, os percebemos tão humanos quanto nós.
Uma relação familiar fragilizada pela distância também permeia a história narrada por Sofia Coppola em Um Lugar Qualquer (Somewhere, 2010). Aqui, presenciamos um recorte da rotina de um ator de Hollywood: sua vida se situa entre filmagens de grandes produções, coletivas de imprensa, premières e festas badaladas. A artificialidade do meio cinematográfico mainstream, a solidão dos quartos de hotéis ao redor do mundo e a incapacidade de vivenciar relações afetivas sólidas produzem uma insatisfação com a própria existência. Ao passo em que o personagem Johnny Marco enfrenta uma crise de meia idade, onde questões de identidade, culpa e descontentamento se anunciam, sua filha de onze anos surge como uma presença capaz de reavivar em Marco a sinceridade e o afeto.
Recuperar a capacidade de comunicação e afeto, perceber o seu papel no mundo, refletir sobre as consequências de uma temporalidade que se esforça em suprimir as singelezas.  A transcendência, vislumbrada de forma muito sutil em cenas-chave de Eu, Você e Todos Nós, tão almejada e possível em Darjeeling, seria na verdade tão utópica quanto as estruturas do nosso mundo de hoje nos fazem pensá-la? Enquanto indivíduos vivendo o transcorrer da transitoriedade, não seremos personagens daquela história maior, repleta de uma determinante impessoalidade, esforçada em empalidecer as coisas por trás das coisas. Mas o cinema, entre outras artes, nos permite ler (e reler) as entrelinhas dessa história. São impressões de olhares alheios, recortes e pequenos insights - discursos particulares, mas passíveis de identificação - que nos permitem, na experiência cinematográfica, re-olhar e ressignificar o mundo, exercício tão esquecido e tão premente. Mostrar estes olhares, abrangentes ou oblíquos, amargos ou esperançosos, focados no ser humano e no seu tempo, é função primeira deste pequeno ciclo de filmes.


Nenhum comentário:

Postar um comentário